domingo, 7 de setembro de 2014

Errados (Luiz Sérgio Jacaré Metz)





Não, não, não me diga
dos que desistiram
desses não
mas dos que fracassaram
com a alma presa nas ferragens
da noite
rodeando as labaredas do
fogo gelado
gravitando na gravura
do garimpo escalavrado
onde não há mineral nem elementos
nem há umos nem há tempo
apenas o girar
nu e impalpável
da original radicalidade

(o fracasso é preferível
para quem está diante
da bula das balas.
O dialeto das navalhas
comungando um texto
em nanquim e carvão)

Não, não, não me diga
dos que desistiram
desses não
Mas dos que fracassaram
com a alma presa nas ferragens
da noite.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Cachoeira (Naide Ribas)

Quem pensa que o rio não sente
com certeza nunca viu
as cacheiras que se formam
com as lágrimas do rio

Cachoeira, cachoeira
Tu e o tempo, tão iguais!
Para nós, não tem retorno
Tuas águas, não voltam mais

Ao olhar a queda d’água
Que a vida chamou cachoeira
Lembro das quedas da vida
Que se enfrenta a vida inteira

Cachoeira, cachoeira
Tu e o tempo, tão iguais!
Para nós, não tem retorno
Tuas águas, não voltam mais

Letra: Naide Ribas
Música: Juarez Bittencourt



Ao perder-te a ti (Ernesto Cardenal)

Ao perder-te eu a ti
Tu e eu perdemos
Eu, porque tu eras o que eu mais amava
tu porque eu era quem te amava mais

Mas de nós dois
tu perdes mais que eu
porque eu poderei amar a outras como te amava a ti
Mas a ti não te amarão
Como te amava eu...
Não te amarão

De que me servem a mim, a primavera
Esta cidade com praças e alamedas
se no acontecer do dia que se vai
em toda essa cidade, não há quem me espere...

De que me servem a mim tantas paisagens
o céu cruel e azul, a lua cheia
se no anoitecer da escura imensidão
ninguém me espera

Em toda esta cidade
Não há quem me queira...

Os olhos sem amor são olhos mortos
Olham, mas não veem a pele do dia
a festa de cor do pássara, e a flor
o rosto natural da alegria

De que pode servir olharmo-nos sem amar
Os olhos sem amor não veem a vida
o solitário caminho solitário rumo à morte
É como um forasteiro dos dias
Dirá que este aqui e não soube entender porque
Os que te amavam, sorriam...

Um homem, uma mulher, por separado
São a metade do ser. Duas solidões
De que podem servir, se não sabem unir
No rio de uma criança, os dois sangues...

Ao perder-te eu a ti
Tu e eu perdemos...

domingo, 27 de julho de 2014

A morte de Pedro Ninguém (Luiz Menezes)

Ouça a declamação de Luiz Otávio Ribas


Veio a cantiga da noite
Na garupa do aguaceiro
Cabresteada pelo vento.
Até um relâmpago alçado
Andou pateando o espaço
Preludiando temporal...

Mais “oigatê” como é brabo
Este tal do mês de agosto!

A voz do preto Clarindo
Veio do fundo do rancho
Que se velava o finado:
- Ô Juca, vai lá na venda,
Compra dois real de “gayeta”
E um naco de fumo grande,
Que a noite vai ser comprida...

Lá fora o céu era negro
Assim como um campo grande
Que fora queimado há pouco.
O Juca pediu a bênção
Pra seu padrinho Clarindo
E se enfurnou noite-a-dentro
Na direção do bolicho.

Agora só a luz das velas
Clareava os rostos sombrios
Da peonada no velório
Onde o respeito era pouco!
Pois entre risos e ditos
Iam se contando causos
De peleias, de carreiras
E de chinas mal-domadas;
Esquecidos do finado!...

Foi quando o preto Clarindo
Compreendendo o desrespeito
Pelo coitado do morto,
Tirou uma longa tragada,
Pigarreou - como pensando –
Para afinal sentenciar:

- O homem que nasce pobre
É como cavalo xucro...
É pealado pela vida,
Sofre a doma das tristezas...
Até que um dia se amansa
Perde a vontade e a fé...
Depois já sem serventia
Morre à beira do alambrado
Esquecido... sem ninguém.

Vejam vocês, nessa noite
O Pedro já não existe.
Amanhã se vai o corpo,
Pois a alma do coitado
De há muito já estava morta.
Andava assim como andam
“Miles” de guascas sem rumo,
Fugindo pelos atalhos
Do povoado... das taperas ...

Bueno... total é a vida!
Amanhã será um de nós...

Até a viúva quando saiba
Que o pobre Pedro morreu
Decerto vai chorar pouco.
Chorar é pra quem tem tempo
E o tempo pra o pobre é escasso
Para se lastimar à toa,
Quando já não tem remédio
Nem esperança num cobre ...

Livino! Me passa a canha
Que é pra esquentar o pensamento...
Caramba! Como faz frio
Neste tal do mês de agosto!...

Um trovão rolou no espaço
E a chuva seguiu cantando
No funeral da saudade...
Saudade? Ora saudade!...
A saudade não tem tempo
De chorar, Pedro Ninguém!

Breve romance de Chiquinho da Vaca (Aparício Silva Rillo)

Ouça a declamação de Luiz Otávio Ribas


Francisco da Silva Teixeira Brandão
Que nome formoso, que nome pomposo
Parece que nome de Conde ou Barão
Acontece que não

Francisco da Silva Teixeira Brandão
Foi nome de homem sem cruz nem brasão
Que em toda sua vida não teve branduras, embora Brandão

Foi menino, gadinho de osso em tropeadas de sonho
Cresceu, fez-se moço, tropeadas compridas em gados alheios
Viveu, ficou velho, os filhos tropeando e pra ele o galpão

E um dia sozinho tição já sem brasas
Num catre de tentos o velho morreu
Na estância mais rica do grande Rio Grande
Que apenas lhe deu sete palmos de chão

E hoje, se o lembram no acaso de um causo
Ninguém memoriza Francisco da Silva Teixeira Brandão
Apenas, por muito favor da memória
O apelido sem glória que o povo lhe deu
Chiquinho da Vaca, peão de fazenda
Um homem sem nome que a história esqueceu




Cântico negro (José Régio)

Ouça a declamação de Tomás Motta Ribas


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Mensagem à poesia (Vinícius de Moraes)

Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso reconquistar a vida.
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado — não a magoem... — que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente

Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.

Se ela não compreender, oh procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada 
Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber, contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável
Solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.
Mas não a traí.
Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la.
A minha ausência.
É também um sortilégio
Do seu amor por mim.
Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz.
Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo.
Talvez eu deva
Morrer sem vê-la mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia.
Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia.
Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A minha alma se afogou no rio (Carlos Omar Villela Gomes)

Ouça a declamação por Nelson Ribas.

A minha alma se afogou no rio...
Peço desculpas se não convidei
Os amigos pra o funeral,
Mas foi tudo muito rápido, brutal,
E não tive tempo pras formalidades
Que exigia a gravidade da ocasião.

Minha alma se jogou de mim,
Feito quem se livra de um estorvo...

Será por minha cara judiada?
Será pelo meu corpo estropiado
Ou por este olhar sem horizonte
Que me faz o semblante tão cansado?

Será que não quis ver suas pandorgas
Subindo rumo a um céu tão desbotado?

Será que preferiu as correntezas
À mansidão de um poço sem futuro?
Sem medo de perigos e incertezas,
Qual pedra que se vai às profundezas
Minha alma mergulhou no rio escuro.

Talvez seja pelo meu ofício...

Talvez tenha cansado de espinhéis,
De tarrafas, chalanas e de anzóis...
Talvez tenha bebido tantos sóis,
Até não saber mais, perder a conta,
Sem entender que a vida é uma linhada
Onde a sorte nos tenteia na outra ponta.

A minha alma se jogou de mim...

Talvez seja pelo rancho tosco,
Pelo catre rude, pela bóia igual...
Talvez seja pelas roupas gastas,
Pelo cusco magro, pelo mate frio...
Talvez por se julgar maior que eu
A minha alma se afogou no rio.

Minha alma se afogou, foi sem anúncio,
Sem participação, comunicado...
Não avisou amigos nem amores,
Não avisou sequer a mim do fato...
Quando me vi, estava abandonado,
Só me restando um vulto... ...e o relato.

A minha alma se afogou no rio,
Não encontrei sequer restos mortais;
Apenas, num suspiro, se esvaiu...
Um barco naufragado que sumiu,
Fazendo desse rio seu nunca mais.

Talvez seja pela cruz plantada,
Pelo rosto moço num retrato antigo...
Talvez seja pelas esperanças
Que se amiudaram nos estios da vida.

Talvez pelos combates, dia a dia,
Minha alma implorasse parceria
E eu, cansado demais, não soube ouvir...
Quem sabe ao afundar por essas águas,
Quisesse minha mão para salvá-la...
A mão que, sem razão, não estendi.

A minha alma se afogou no rio...

Talvez querendo um beijo das estrelas
Que pintavam de luz as corredeiras,
Minha alma, sedenta, se jogou;
Quem sabe, sem querer, se confundiu,
Pois via nas funduras desse rio
Apenas um espelho do que sou...

...Ou talvez o rio seja a liberdade
Que a minha alma, em mim, não encontrou!


Lagoa (Aparício Silva Rillo)


I

As estrelas pediram,
pediram um espelho
pra Nosso Senhor.

O Senhor, surpreendido,
estranhando a pedido
chamou por Maria.

As estrelas pediram,
pediram um espelho
pra Virgem Maria.
Maria, tão boa!
Cortou do infinito um pedaço do céu,
de um pedaço de céu ela fez a lagoa.

Ficou um buraco no forro do céu,
chamando Maria, lhe disse o Senhor:
- Remenda o meu céu, que a idéia foi tua.
Maria, sorrindo, rasgou o seu manto
e pregou no infinito o remendo da lua.

II

Lagoa!
Sesmaria de águas claras
deitada nos pedregulhos.
Espelho grande onde as estrelas tolas
vem ajeitar o véu de lantejoulas
durante a longa procissão noturna.

Quando o sol da manhã tu te incendeias,
uma orgia de penas te enfeita as areias
e o silêncio se quebra a um concerto e pios.
A quietude das águas
nas praias mais rasas,
se encrespa de gozo ao buliço das asas
fazendo tremer os teus juncos esguios.

Gamela onde bebem, os bichos do campo
nas praias sombreadas por salsos-chorões.

Gamela de barro,
de pedra e areia,
tão cheia de água,
tão cheia de juncos,
tão cheia de flores
azuis de aguapés...

Lagoa noturna, salão das estrelas,
lagoa de luz, várzea grande de sol.
|lagoa dos salsos e das corticeiras,
lagoa onde mora
o martim-pescador.

Lagoa das lontras e das ariranhas,
lagoa dos peixes e dos jacarés
que brutos e rudes, armando carrancas,
espreitam as garças - tão tristes, tão brancas!
- que cismam em silêncio sobre os aguapés.

III

Lagoa do campo,

pedaço de céu!

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A palavra querida (autor desconhecido)

A palavra ‘querida’ está para a garganta
Como o mel para a boca e a mulher para o olhar.
Quando um santo, no Céu, se dirige a uma santa
De face imaculada e expressão comovida,
É assim, pensa, que ele a deve chamar,
Oh querida!

‘Querida’ é um substantivo espiritual; é um nome.
É um fio emocional de um ouro cristalino,
Que se estende e que atrai um destino e um destino;
Que alinhava e que enleia uma vida e outra vida.
Não é somente um modo de tratar; é um nome,
Assim como Izabel, Marina, Margarida.
No entanto, é mais do que isso; é um nome divino,
Que em si define um sonho, um sentimento e um bem.
‘Querida’ não é só uma palavra; é alguém,
alguém que tem a vida em nossa própria vida.
‘Querida’ quer dizer: ‘Eu mesmo e mais alguém’, oh querida!

‘Querida’ é um adjetivo estranhamente feito
de carinho, ciúme, adoração, ternura.
Ninguém dirá ‘querida’ a uma mulher impura!
Pois parte da expressão fica em ecos no peito
Daquele que a usou; pois a expressão ‘querida’
Não é bem para ser falada, nem ouvida.
É para que uma alma a pense e outra a sinta.

Sempre será maldita uma mulher que minta
Em silêncio, atendendo a alguém que assim a chama,
Se não se ouviu chamar, antes que ele falasse,
Por um tic no peito e um carinho na face;
Se não é profundamente a querida que o ama!
Que cruel, que infiel essa mulher fingida
Que se deixa chamar por ‘querida’ e não ama,
Oh querida!

‘Querida’ quer dizer: ‘A que eu amo e estremeço’;
a que é a minha amante, a minha amiga e irmã!
Conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço!
Por mais anos que passem, eu jamais a esqueço!
E com ela eu esqueço o Ontem e o Amanhã!’

A palavra ‘querida’ é a articulação
Do primeiro vagido instintivo e inconsciente.
É Deus na nossa boca e o Céu a nossa frente;
É ter mundos no olhar, ter estrelas na mão.
É ser um fio d’água e uma constelação;
É partilhar da grande Vida Universal;
É viver, mas viver! Como anjo e animal;
É concentrar o espaço e resumir a vida;
É trilhar confiante uma senda perdida;
É ser quase divino e ser quase brutal;
É ter uma utopia entre a sala e o quintal!
É prender-te, sentir-te integrada, diluída
Nos meus braços, em mim, infiltrada em meus poros,
Depois que eu derrubei os gigantes e os toros
Da floresta do mundo e a transpuz triunfante!

É te chamar ‘querida’ e ver teu semblante
Transtornado de luz, de uma luz comovida!
E chegares o ouvido ao meu peito anelante
E ouvir meu coração dizer de instante a instante;
Oh, querida!... Querida!

Herança (Apparicio Silva Rillo)

Naqueles tempos, sim,
naqueles tempos as casas já nasciam velhas.
Naqueles tempos, sim, naqueles tempos, sim,
naqueles tempos as casas já nasciam velhas.
Eram uma casas cálidas, solenes
sob as telhas portuguesas, maternais.
Em pálidos azuis eram pintadas
e em brancos, em ocres e amarelos.
Algumas nem mesmo tinham reboco. Na
carne dos tijolos mostravam-se nuas,
abertas em janelas que espiavam
da sombra verde para o sol das ruas.

Naqueles tempos, sim,
naqueles tempos
tinham balcões e sacadas essas casas
e úmidos porões e sótãos com fantasmas.
E tinham jasmineiros sobre os muros
e acolhedoras latrinas de madeira
disfarçadas entre as plantas dos quintais.
E laranjeiras e galos e cachorros
um barril barrigudo cheio d'água
e uma concha de lata para a sede.
Nas varandas que eram frescas e abertas
a moleza da sesta numa rede...

Naqueles tempos, sim,
naqueles tempos
as portas eram altas
e alto o pé-direito das salas dessas casas.
Mas eram simples as pessoas que as casas abrigavam.
Os homens chamavam-se Bento, Honorato, Deoclécio,
as mulheres eram Carlinda, Emerenciana, Vicentina.
Os homens usavam barbas e picavam fumo em rama,
as mulheres faziam filhos, bordados e rosquinhas.
Os homens iam ao clube, as mulheres À missa,
e homens e mulheres aos velórios.
Morriam discretamente e ficavam nos retratos.

Naqueles tempos, sim,
naqueles tempos
a igreja tinha santos nos altares
e havia mulheres rezando ao pé do santos.
O padre usava uma batina cheia de manchas e botões,
batizava crianças, encomendava os mortos,
rezava a missa em latim: "Agnus Dei"...
e comia cordeiro gordo na mesa do intendente.
Os homens ajudavam nas obras da igreja,

mas acreditavam mais nas armas que nos santos.

Naqueles tempos, sim,
naqueles tempos
os chefes eram chamados "coronéis".
Ganhavam seus galões debaixo da fumaça
em peleias a pata de cavalo,
garruchas de um tiro só e espadas de bom aço.
As mulheres plantavam flores e temperos
pois tinham mesma valia o espírito e o corpo.
Sabiam receitas de panelas fartas,
faziam velas de sebo e tachadas de doce
e de graxas e cinzas inventavam sabão.

Naqueles tempos, sim,
naqueles tempos
os bois mandavam nos homens,
e por isso a vida era mansa na cidadezinha
arrodeada de ventos, chácaras e estâncias.
Os touros cumpriam devotamente o seu mister
e as vacas, pacientes,
pariam terneiros e terneiros e terneiros.
O campo engordava os bois,
as tropas de abril engordavam os homens
e os homens engordavam as mulheres.

Por isso a cidade chegou até aqui.
Por isso estamos aqui
- netos e bisnetos desses homens,
dessas mulheres, netas e bisnetas.

Por isso um berro de boi nos toca tanto
e tão profundamente.
Por isso somos guardiões de casas velhas,
almas de sesmarias e de estâncias,
paredes que suportam seus retratos.

O músculo do boi na força que nos leva.
A barba dos avós como um selo no queixo.
O doce das avós na memória da boca
e nela este responso:

- Naqueles tempos, sim, naqueles tempos...

Eis o Homem (Marco Aurélio Campos)

Brotei do ventre da Pampa
que é Pátria na minha Terra.
Sou resumo de uma guerra
que ainda tem importância.

E, diante de tal circunstância,
Segui os clarins farroupilhas
E devorando coxilhas,
Me transformei em distância.
Sou do tipo que numa estrada
Só existe quando está só.
Sou muito de barro e pó.
Sou tapera, fui morada.
Sou a velha cruz falquejada
Num cerne de curunilha.
Sou raiz, sol farroupilha,
Renascendo estas manhãs,
Sou o grito dos tahas
Coejando sobre as coxilhas.

Caminho como quem anda
Na direção de si mesmo.
E de tanto andar a esmo,
Fui de uma a outra banda,
E se a inspiração me comanda,
Da trilha logo me afasto
E até sementes de pasto
Replanto pelas vermelhas
Estradas velhas parelhas,
Ao repisar no meu rastro.

Sou a alma cheia e tão longa,
Como os caminhos que voltam
Substituindo os espinhos
E a perda de alguns carinhos.
Velhos e antigos afrontes,
Surgiram muitos, aos montes,
Nesta minha vida aragana,
Destas andanças veterana,
De ir descampando horizontes.

Sou a briga de touros
No gineceu do rodeio.
Improtério em tombo feio,
Quando o índio cai de estouro.
Sou o ruído que o couro faz,
Ao roçar no capim.
Sou o rin-tim-tim da espora
Em aço templado.
E trago o silêncio guardado,
Do pago dentro de mim.

Fazendo vez de oratório,
Sou cacimba destampada,
De boca aberta, calada,
Como a espera do ofertório.
Como vigia em velório,
Que tem um jeito que é tão seu.
Tem muito de terra... é céu,
Que a gente sente ajoelhando,
De mãos postas levantando
O pago inteiro para Deus.

Sou o sono do cusco amigo,
Dormindo sobre o borralho.
Sou vozerio do trabalho,
Na guerra ou na paz - sou perigo.
Sou lápide de jazigo
Perdido nalgum potreiro.
Sou manha de caborteiro,
Sou voz rouca de acordeona,
Cantando triste e chorona,
Um canto chão brasileiro.

Sou a graxa da picanha
Na bexiga enfumaçada,
Sou cebo de rinhonada.
Me garantindo a façanha.
Sou voz de campanha,
Que nos lançantes se some.
Sou boi-ta-tá - lobisomem.
Sou a santa ignorância.
Sou o índio sem infância,
Que sem querer ficou homem.

Sou Sepé Tiarajú,
Rio Uruguai, rio-mar azul,
Sou o cruzeiro do sul,
A luz guia do índio cru.
Sou galpão, charla, Sou chirú,
de magalhanicas viagens,
Andejei por mil paisagens,
Sem jamais sofrer sogaço.
Cresci juntando pedaços
De brasileiras coragens.

Sou enfim, o sabiá que canta,
Alegre, embora sozinho.
Sou gemido do moinho,
Num tom triste que encanta.
Sou pó que se levanta,
Sou raiz, sou sangue, sou verso.
Sou maior que a história grega.
Eu sou Gaúcho, e me chega
P'rá ser feliz no universo.